domingo, 10 de janeiro de 2010

OBRAS PRIMAS DO CONTO DE SUSPENSE


Depois de termos o excelente Obras Primas do Conto Fantástico resenhado aqui na Biblioteca pelo nosso chefinho Mário, chegou a vez de conferirmos o interessante Obras Primas do Conto de Suspense, da mesma editora Martins, lançado em 1966. Quero abrir o texto afirmando que me impressionou a qualidade editorial da obra, com uma bela introdução, ótimas traduções e, principalmente, por trazer um texto informativo a respeito de cada autor antes dos contos. Isso pode parecer irrelevante tratando-se de nomes famosos, como Edgar Allan Poe e Conan Doyle, mas é imprescindível para nos apresentar à maioria dos escritores aqui presentes, desconhecidos ou já esquecidos. Também quero elogiar a inclusão de escritores brasileiros, como vocês verão a seguir. Sem mais demora, vamos aos contos.

O Caso do Sr. Valdemar (Edgar Allan Poe): Dispensam apresentações, tanto o conto como o autor. Um dos melhores trabalhos deste perturbado americano, O Caso do Sr. Valdemar é um clássico apavorante, que trata de hipnotismo e flerta com zumbis, aumentando a carga de suspense linha após linha, parágrafo após parágrafo, até uma escatológica explosão final. Ou seja, um ótimo começo.

A Dama, ou o Tigre? (Frank R. Stockton): Este foi o que mais me intrigou. De acordo com o texto informativo sobre o autor, ele escrevia livros infantis, mas foi com este conto que atingiu a fama. E é com um clima de fábula que ele nos apresenta a um rei megalomaníaco que inventou uma curiosa maneira de julgar os acusados de crimes no seu reino: o réu é levado a uma arena, à moda do Coliseu, e sob o olhar de uma imensa multidão lhe são oferecidas duas portas idênticas, das quais ele só poderá abrir uma, à sua escolha. Dela poderá sair um tigre muito feroz e faminto que lhe devorará em segundos, ou então uma bela jovem com quem ele se casará ali mesmo, diante de todos. É só o destino que pode decidir se o sujeito merece uma morte violenta ou uma festa grandiosa. Há várias qualidades no texto, como o suspense quase insuportável, a possibilidade de uma leitura freudiana e a grande interação do autor com o leitor. Mas o que mais me ganhou foi o final, que foge totalmente das convenções dos contos — o que poderá até irritar algumas pessoas, mas que o deixa com um charme irresistível e ainda lhe dá mais força.

A Chinela Turca (Machado de Assis): O maior nome da literatura brasileira escreveu contos de bastante suspense com seu estilo irrepreensível, como prova este belo exemplar. Cheio de pontos de virada, o conto pode servir como ótima entrada para aqueles que tacham a obra machadeana como monótona. Aliás, este conto é um manifesto anti-monotonia. Começa com um protagonista saindo para um baile, onde se encontrará com uma moça por quem está apaixonado (calma lá, amigos, as coisas melhoram). Em seguida ele é impedido de sair pela chegada de uma inesperada visita, e quando finalmente vê seu caminho livre para ir namorar, surgem dois sujeitos que se apresentam como policiais e o acusam pelo roubo da valiosa peça do título. O pobre apaixonado é levado junto com eles, apenas para descobrir que os caras não são da polícia coisa nenhuma: são bandidos, e querem lhe aplicar um golpe antes de assassiná-lo. O final também pode desagradar alguns leitores, mas traz a marca registrada do autor, que é a ironia.

A Tisana (Léon Bloy): O texto de apresentação do autor fez com que eu me interessasse imensamente por ele, retratando-o como uma figura estranha, violenta, intolerante, desagradável e inquisidora, que escrevia demonstrando sua predileção por perversões hediondas e torpezas horripilantes. Talvez por toda essa expectativa gerada, esta tenha sido a primeira grande decepção da coletânea. O conto é simplório e totalmente previsível. Traz um jovem que, por acaso, ouve sua mãe confessar ao padre que ela havia colocado veneno no chá de alguém, o que deixa o filho com dúvidas sobre quem é a pobre vítima de tão amável senhora. Achei infantil demais, até mesmo o final, que se pretende sarcástico, mas que acaba sendo terrivelmente batido e sem graça.

Louco (Guy de Maupassant): Outro autor que dispensa apresentações, aqui às voltas com um de seus temas recorrentes: o rumo à insanidade. Narrado na forma de anotações em um diário, mostra a decadência moral de um juiz que deseja experimentar o assassinato. Um dos textos mais cruéis e pesados de Maupassant, que impressiona por trazer infanticídio e o covarde homicídio de um sujeito indefeso.

O Quarto do Pesadelo (Conan Doyle): Mais conhecido pelos livros que trazem o famoso detetive Sherlock Holmes, Doyle também investiu em contos que se revelam superiores aos trabalhos que o tornaram famoso. Aqui já de início estranhamos a atmosfera misteriosa do ambiente, para só então sermos apresentados a um casal que entra em cena, cujo marido acabou de descobrir que a esposa o quer morto para fugir com o amante. Depois de um tenso diálogo, o conto volta a assumir um caráter fantasmagórico, descrevendo a presença de um terceiro personagem que observava a cena sem ser notado, e acaba de forma totalmente inesperada, ao revelar o segredo de tudo somente na última linha (final que, novamente, talvez não agrade a todos, mas que é inegavelmente desconcertante).

Carne, Nada Mais (Jack London): Um belo título, não? Porém, aqui precisamos abrir parênteses, pois começam a surgir na coletânea os contos do gênero policial, presente naquelas pulp fictions que faziam muito sucesso na época. Apesar da fama, eles eram considerados como lixo pela crítica, e quem ler as amostras presentes nesta antologia saberá o motivo. Parece que a moda neste tipo de literatura foi trazer aqueles personagens desajustados que, sempre durante a noite, tentam cometer algum crime perfeito, podendo este ser um golpe, um assalto ou um assassinato. Os problemas de narrativa começam quando os autores, na falta de talento, criam péssimos diálogos, situações absurdas e protagonistas capazes de tomar atitudes extremamente idiotas, achando que são inteligentes. Este conto não é dos piores, apresentando dois criminosos que roubam uma quantidade considerável de diamantes e um deles começa a tecer formas de eliminar o outro. Há certa tensão, mas com vários altos e baixos.

A Aventura de Rozendo Moura (João do Rio): O segundo título brasileiro do livro. Quem conhece João do Rio, principalmente através de seu sombrio livro Dentro da Noite, sabe no que ele é capaz de transformar as paisagens noturnas cariocas. Aqui um rapaz resolve ajudar uma moça que está fugindo do violento amante durante o Carnaval, mas o perseguidor parece agir de forma sobrenatural, sempre os alcançando facilmente apesar dos esforços que o casal faz para se locomover de forma incógnita.

Bocatorta (Monteiro Lobato): Este foi, literalmente, o conto do livro que mais me tirou o fôlego. Somente após o final é que consegui dar uma respirada de alívio. Desde as primeiras linhas, quando Lobato descreve um pântano mais profundo que o normal (que parece chegar até o inferno), o leitor já sente o clima de terror. Mas as coisas vão ficando mais pesadas e fúnebres depois que os personagens conversam sobre a existência de um estranho negro deformado, que pode estar envolvido com a violação de túmulos em uma comunidade rural. Narrativa angustiante, que pode impressionar os mais sensíveis.

As Mãos do Senhor Ottermole (Thomas Burke): Outro exemplar do gênero policial, que até surpreende. Trata-se de uma espécie de giallo (gênero de revistas e filmes policiais muito populares na Itália, com a presença de um assassino em série e a investigação dos crimes), que procura trazer as motivações por trás de um estrangulador. Mantém-se interessante até o fim, mas peca com alguns momentos inverossímeis.

A Casa da Rua Turk (Dashiell Hammet): Este sim, uma prova do quanto os contos policiais podiam ser ingênuos. Um detetive bate de porta em porta à procura de um jovem desaparecido, mas é aprisionado na casa de um grupo de criminosos. Desde o início notamos nos personagens aquelas atitudes absurdas que já mencionei, e as coisas só vão piorando com o decorrer dos acontecimentos. Bandidos que revelam passo a passo seus planos “secretos” bem na frente do herói e outras coisas estapafúrdias chegam a irritar: típico conto de escritor amador. É uma pena, pois Hammet é tido como um dos maiores nomes do gênero, autor de romances como O Falcão Maltês, e deve ter contos melhores que poderiam ilustrar esta seleta.

Cinderela e a Ralé (Cornell Woolrich): Depois de um trabalho totalmente datado e absurdo como o anterior, nada melhor do que uma gozação com o gênero para retirar o gosto ruim da boca. Na verdade temos aqui uma verdadeira comédia policial. Ou, pelo menos, é um conto policial que acertadamente nunca se leva a sério. A trama: uma menina de doze anos está entediada por estar sozinha em casa, estudando, enquanto o resto da família foi ao cinema. Um criminoso liga para ela, ao se enganar de número de telefone, e a confunde com uma mercenária. A menina, sem perceber o perigo e querendo divertir-se, entra no jogo e vai ao encontro do gângster, cujo bando quer usá-la como isca para roubar e matar um rival. É possível rir bastante com a ingenuidade da garota, que entende literalmente gírias como “esticar as canelas”, e também com a presença de todos os clichês do gênero. Apesar de ser um pastiche, é carregado de suspense, pois a menina ingenuamente se vê presa em uma situação extremamente perigosa, da qual há poucas chances de escapar viva. Interessante também as alusões à personagem Cinderela, transformando o conto em uma espécie de fábula tarantinesca.

Material de Interesse Humano (Brett Halliday): Confesso que este me surpreendeu. É um western moderno, sobre um americano que comanda a construção de uma ferrovia em um deserto do México e faz amizade com um misterioso compatriota que surge do nada e lhe pede emprego — o qual, porventura, pode ser um assassino em fuga da polícia. Cheio de diálogos de duplo sentido, o conto conclui com uma revelação surpreendente, daquelas que o escritor soube esconder muito bem do leitor. Impressionante.

A Polícia Sobe a Escada (Thomas Narcejac): São páginas do diário de um sujeito que acabou de assassinar um antigo desafeto e está se escondendo. É interessante o arco dramático do protagonista, que de confiante por ter cometido o crime perfeito passa a demonstrar um comportamento paranóico, lembrando-se de possíveis pistas que pode ter deixado na cena do crime, e enxergando improváveis policiais disfarçados o vigiando por toda parte. A conclusão poderia ter sido abreviada, pois muda o tom da narrativa e me pareceu um tanto artificial. Mas pode funcionar para aqueles que a encararem como uma ironia, a la os finais dos filmes do Woody Allen.

A Magnólia Perdida (Luiz Lopes Coelho): Terceiro e último autor brasileiro do livro. Infelizmente, o que ele apresenta aqui é mais uma bobagem policial, com todos aqueles defeitos que já citei, em uma história clichê sobre um marido que envenena a esposa.

Cordéis Desatados (Ray Bradbury): Surpreendentemente o livro dá um tempo com os contos policiais e traz este belo exemplar do tio Ray, sobre um homem do futuro que compra um robô, idêntico a ele, para secretamente substituí-lo em algumas tarefas desinteressantes. O problema é que os ciborgs também sabem diferenciar as coisas boas das ruins, e podem ficar irritados com seu dono.

Degelo no nº 127 (Stanley Ellin): Conto um tanto bem humorado, sobre moradores de um condomínio que estão insatisfeitos com a falta de aquecimento do prédio, e resolvem unir-se contra o terrível senhorio para, digamos, convencê-lo a lhes dar o que eles querem. De certa forma lembra aqueles seriados como Amazing Stories, ainda que não traga qualquer elemento fantástico. Não é ruim, mas é inofensivo.

O Luar (Gil Brewer): Um marido traído resolve dar um fim no amante da mulher, mas ela é mais vagaba do que ele pensava, e as coisas fogem de seu controle. Só é ruim enquanto fica naquela lenga-lenga de protagonista elaborar um crime perfeito, sendo que o cara deixa tantas pistas que seria mais fácil se saísse gritando: “Vejam, estou cometendo um crime!”. Ainda assim, apesar dos defeitos, termina de forma inesperada e violenta, o que me fez acreditar que valeu a pena tê-lo lido.

A Última Gargalhada (Lix Agrabee): Mais um casal problemático em que um dos dois decide acabar com a vida do outro. Este começa de forma legal (porém já conhecida pelos leitores habituados com o gênero), revelando desde o início que o narrador-personagem já sabe que vai morrer. É fraquinho, mas dá para divertir um pouco. Muito pouco para se encerrar um livro desses, diga-se de passagem.

Enfim, apesar dos vários deslizes, Obras Primas do Conto de Suspense é altamente recomendado por causa de suas verdadeiras obras primas, que chegam a tornar o livro impróprio para cardíacos. Quem tiver a sorte de encontrá-lo em algum sebo, não perca a chance de adquiri-lo, pois lhe proporcionará aqueles adoráveis momentos em que roer as unhas é a única escolha.

L.F. Riesemberg / grafiasnoturnas.blogspot.com

Um comentário:

  1. Um livro que traz Cornell Woolrich já vale a pena ser lido. Woolrich é o autor de A Dama Fantasma, A noiva Estava de Preto e Casei-ne com um Morto. Teve a maioria de suas obras adaptadas para o cinema por Alfred Hitchcock e é pouco conhecido no Brasil, ou pelo menos pouco lido.

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